Doutores demais e profissionais de menos

Está disponível interessante estudo realizado pelo Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE) por encomenda do Ministério da Ciência e Tecnologia, Doutores 2010: estudos da demografia da base técnico-científica brasileira. Trata-se de abrangente diagnóstico sobre o desempenho da pós-graduação do País nos últimos anos, com ênfase na formação de doutores. Por ele ficamos sabendo que o sistema nacional liderado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) teve um desempenho formidável nos últimos 15 anos, com destaque para o período 1996-2008, em que foram titulados 87 mil doutores, na taxa média de 12% de crescimento anual.
Esses resultados têm sido muito comemorados pelo governo federal e pelas universidades e os autores do estudo refletem essa onda de otimismo. Afinal, nas suas palavras, doutores "são profissionais com capacidade para realizar pesquisa e desenvolvimento (P&D) original" e, por isso, defendem a tese de que para alcançarmos o padrão dos países desenvolvidos deveríamos multiplicar por pelo menos 4,5 vezes a sua proporção em relação à população total.

Mas nem tudo são flores nessa área e temos sérios problemas nas relações da pós-graduação com o mercado de trabalho do País. O estudo aponta com precisão o que muitos de nós intuíamos, isto é, que de cada dez doutores formados no período 1996-2006 e empregados em 2008, oito estão trabalhando em educação (principalmente nas universidades públicas), um na administração pública e um nas empresas privadas. Aí está o amargo reverso da moeda, em que virtudes podem tornar-se pecados. É evidente que implantamos um sistema eficiente para produzir doutores, mas ele tem o grave defeito de ser excessivamente acadêmico e autocentrado e, portanto, descolado do mercado de trabalho e da economia real do País.

Os dirigentes do Ministério da Educação (MEC) e da Capes podem argumentar, com razão, que o papel da agência criada para promover o "aperfeiçoamento de pessoal de ensino superior" tem sido cumprido. E as universidades (principalmente as públicas), com os seus atuais 2.718 programas de pós-graduação, apontarão para a comprovada correlação dessa atividade (e a atuação dos seus doutores) com o aumento da produção científica. Afinal, esses docentes pesquisam, publicam papers e ainda podem formar mestres e doutores, e por isso elas definiram essa titulação como pré-requisito para o ingresso de docentes em seus concursos públicos.

Há os que se preocupam com o futuro desse sistema e recomendam que na elaboração do próximo Plano Nacional de Pós-Graduação seja também contemplada a formação de recursos humanos para o mercado de trabalho "extra-acadêmico". Lembro, entretanto, que essa diretriz consta do atual plano quinquenal e que se avançou pouquíssimo nesse terreno. Indicador positivo seria o crescimento de 0,95% para 1,98%, no período, do número de doutores empregados na indústria de transformação. Mas sejamos razoáveis. Além de irrisório, esse desempenho é implacavelmente ofuscado por outro: o contingente de doutores na administração pública passou de 8.5% para 14%, reflexo da expansão do setor público nos últimos anos.

Mantidas as características desse sistema, é certo que teremos problemas para absorver as novas safras de jovens doutores que as universidades continuarão a produzir em ritmo crescente. Como os seus maiores empregadores no País até o momento, as universidades federais tiveram enorme expansão no atual governo, em que dobraram a oferta de vagas em seus cursos de graduação e ampliaram muito as suas atividades de pós-graduação. Mas há sinais de esgotamento no ensino superior do País - como as sobras de vagas - e é certo que esse ritmo de expansão não será mantido, assim como o das despesas com pessoal na administração pública. Por outro lado, cerca de 40% dos recém-doutores formados nos dois últimos anos ainda não estão empregados e esse pode ser o sinal amarelo que nos alerta para esse início de reversão.

Resta o mercado de trabalho das empresas privadas, mas esse é um terreno pouco conhecido, praticamente inexplorado e por vezes hostilizado pelo universo acadêmico. Sobre o tema dos recursos humanos qualificados, sabemos, por exemplo, que os empresários se queixam muito de que o País carece de engenheiros. Outro indicador do comportamento das empresas é que mesmo em atividades de pesquisa tem sido escasso o seu interesse na contratação de doutores com perfil acadêmico e vocação para cientista e por isso estes são minoria mesmo em grandes centros de P&D, como o Cenpes da Petrobrás e o CTC da indústria sucroalcooleira.

Especialistas asseguram que hoje em dia grandes empresas preferem recrutar estagiários ou jovens recém-formados que, após rigorosa seleção e na condição de trainees, receberão formação e treinamento complementares. Ao lado da qualificação técnica dos novos profissionais, elas investem na transmissão de valores da cultura empresarial e, nos últimos tempos, dão grande ênfase à gestão de negócios para todo o universo dos seus recursos humanos. Daí por que tendem a valorizar mais certificados de MBA obtidos em instituições de renome nacional e internacional do que títulos acadêmicos como os de mestre e doutor.

Em suma, o próximo governo e as universidades têm um enorme desafio pela frente e é preciso que levem em conta os muitos sinais de mudanças no País e as novas demandas por educação superior. Afinal, vitoriosos na produção de doutores de alto nível, por que não aplicarmos essa receita de sucesso para formar os profissionais de que carece esse novo mercado de trabalho?

Publicado no O Estado de São Paulo em 02 de julho de 2010.

Autor: Wanderley Messias da Costa
Professor titular do Departamento de Geografia da USP. É autor de cinco livros e um dos idealizadores do Centro de Biotecnologia da Amazônia.

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